segunda-feira, 31 de março de 2014

Uma Copa do Mundo particular no campo do marketing esportivo.









Londres _ Sobre as tábuas de madeira clara que formam o piso do ginásio poliesportivo da universidade de Hertfordshire, as marcações em vermelho, verde e amarelo anunciam a disputa pelo espaço. No centro dele, dois atletas recebem adesivos no peito e na testa para terem o suor analisado pelo programa que a Gatorade apresentou, na última sexta-feira, como novidade da seleção brasileira para a Copa do Mundo. Embora o local da demonstração em nada reproduza a atmosfera que os jogadores encontrarão no Brasil, a sobreposição de modalidades, que formam quadras em todos os sentidos do retângulo, é ilustrativa de uma confusa competição que vai além do campo esportivo.

Ao mesmo tempo em que busca a excelência do desempenho físico, ao criar um programa de hidratação individualizado de acordo com as necessidades de cada jogador, a Gatorade, leia-se Pepsi, investe nas suas próprias necessidades especiais para se aproveitar da visibilidade da Copa do Mundo mesmo sem ter convite para festa. Como sua concorrente, a Powerade é um braço da Coca-Cola, que é patrocinadora oficial da Fifa, a Gatorade não pode ter seus produtos nem logomarca exibidos nos dias e nas vésperas de jogos do Brasil no Mundial. Marca registrada da Fifa, até a expressão “Copa do Mundo” não pode ser usada, seja nos discursos dos executivos ou nas campanhas de quem não faz parte da família Fifa. Mesmo assim, a Pespi disputa uma Copa particular, por meio de sua parceria com a CBF, que envolve suporte científico, fornecimento de produtos e uma quantia em dinheiro não revelada.

— Vamos manter toda nossa operação normal com a seleção até o dia sete de junho, quando começa o blackout — disse o diretor de marketing da Gatorade, Tiago Pinto, referindo-se ao período em que as seleções passam a ter a operação submetida ao padrão Fifa.

Assim como nos jogos e treinos oficiais da Copa, todas as seleções só podem usar Powerade, no futebol americano a exclusividade é da Gatorade. Apesar da clara divisão do mercado, há fronteiras ainda a serem demarcadas. Além dos patrocinadores oficiais, só quem pode exibir suas marcas no torneio são os fornecedores de material esportivo das seleções.

Em 1974, todo o time da Holanda exibia três listras na manga da camisa, salvo Cruijff que se recusava a fazer propaganda de graça para a Adidas. Em boa parte das conquistas do Flamengo anos 1980, Zico usava um esparadrapo para cobrir a marca da empresa por ser patrocinado por outra. Com o tempo, o espaço para ações particulares foi tomado por contratos em que os atletas cedem aos clubes e federações o direito ao uso de sua imagem da cabeça aos tornozelos. Os pés ainda estão livres para cada um seguir seu destino.

No caso das chuteiras, que abriram o caminho para o marketing esportivo nos anos 1960, cada jogador tem direito a um contrato particular, seja para melhorar sua performance esportiva ou financeira. Na Copa de 1970, enquanto toda a seleção brasileira calçava Adidas, Pelé já era o único patrocinado pela Puma.

— A liberdade das chuteiras já é um consenso pela melhora que um determinado modelo pode promover no desempenho do jogador. Precisamos aumentar a discussão. Além das novidades na área de hidratação, há dilatadores nasais, bermudas térmicas e outros produtos que estão fora das regras em vigor — disse Tiago Pinto, entre a necessidade de restabelecer novos limites e o respeito à divisão já existente. — Não vamos entrar no espaço dos outros, assim como não queremos que entrem no nosso. Depois do dia 7, teremos o mesmo suporte de profissionais e produtos mas a decisão de usá-los ou não será da CBF.

Desde a preparação para a Copa das Confederações que a seleção tem bebido na fonte de um estudo que une diversos centros de pesquisa pelo mundo e chegou aos jogadores por meio do professor Orlando Laitano, um gaúcho pós-graduado em Fisiologia do Exercício na Inglaterra que hoje é professor da Universidade de Petrolina, em Pernambuco.

Por meio de análises do suor, da urina e do peso dos jogadores, antes de depois da atividade, é possível medir a quantidade de líquido, carboidratos e sódio que cada um precisa ingerir para manter o melhor desempenho por mais tempo. Enquanto o carboidrato é uma das formas de fornecimento de energia, junto com a queima da gordura, o líquido serve para facilitar o fornecimento de nutrientes às células, entre eles o sódio, que tem papel fundamental, combinado ao potássio, na transmissão do estímulo nervoso que faz o músculo trabalhar. Depois dos testes, iniciados há cerca de um ano, chegou-se a uma concentração ideal que cada jogador deve ingerir antes, durante e depois do exercício. Embora seja facultativo, o programa teve adesão total dos jogadores.

— Desde que a gente se juntou a CBF, a seleção não foi questionada por queda de desempenho — disse Orlando ao tratar do bom rendimento do time no segundo tempo dos jogos da Copa das Confederações como um somatório de fatores, entre os quais se inclui a hidratação. — Misturas para melhorar hidratação e desempenho já são feitas por quem aplica a ciência no esporte. A nossa novidade é medir a necessidade individual no esporte coletivo.

Trinta jogadores indicados pela CBF já recebem kits em suas casas com produtos a serem misturados de acordo com a prescrição. Na CBF, o trabalho de juntar sódio, carboidrato e água, com o sabor preferido do jogador, era feito às colheradas por roupeiros e funcionários da Gatorade. Agora, para facilitar a tarefa, existem cápsulas com a concentração específica de cada atleta, que são acopladas a uma garrafa inteligente. Além de facilitar a mistura, o equipamento manda sinais digitais que permitem à comissão técnica controlar a quantidade ingerida e a necessidade de mais ou menos hidratação.

Com uma luz vermelha intermitente na tampa, a garrafa é tão reluzente quanto a logomarca da empresa que transformou o simples ato de matar a sede num produto cada vez mais sofisticado. Todo o trabalho de lançamento obedece ao mesmo conceito que une tecnologia com alto desempenho. No vídeo de demonstração, a reprodução do fluxo de carboidratos e sais minerais pelo corpo mostra o quanto os músculos, inclusive o coração, dependem de condições ideais para pulsar no ritmo que um campeonato do mundo exige .

Do contrário, a desidratação faz o sistema operar no limite da ruptura. Acostumado a conviver com a explosão, seja de gols ou das fibras musculares, Fred é um dos jogadores que mais preocupam a torcida, embora goze da confiança da comissão técnica. Perguntado se o atacante era quem mais precisava seguir a receita da Gatorade, o coordenador Carlos Alberto Parreira brincou:

— Todos tomam. Antigamente o jogador comia só bife com purê o corria do mesmo jeito — disse Parreira ao lembrar dos tempos em que o futebol brasileiro fazia tudo do mesmo jeito para se manter vencedor.

A abertura ao novo é gradual. Certa vez, em palestra os jogadores do Corinthians, o então atacante Luizão saiu da sala quando a nutricionista falou que era preciso evitar o consumo de refrigerantes. Apesar de ter contrato com a CBF desde 2010, a aproximação da Gatarode só se intensificou nos últimos dois anos.

— Futebol é baseado em crenças no talento e no improviso, que o afastam da ciência, mas as novas tecnologias mostram que a ciência está aí para melhorar a vida das pessoas — disse Laitano.

A evolução traz novos produtos e significados para antigas práticas. Suar a camisa hoje não é apenas demonstração de empenho. Serve para medir as perdas químicas. Nos tempos em que repunham a energia com um a jarra d’água e uma bandeja de frutas, os jogadores de desafiam, em tom de brincadeira, no vestiário com a seguinte indagação: “já chupou laranja com quem? Hoje, nem as garrafas são compartilhas. Cada um tem a sua. No campo dos negócios, no entanto, a marcação dos territórios ainda tem áreas que se sobrepõem, como as linhas coloridas do ginásio de Hertfordshire. Capaz de desidratar o espaço ocupado pela concorrência na mídia, resta saber se a garrafa inteligente vai sair das ações de marketing para a rotina de trabalho da seleção. Entre tantas preocupações de uma comissão técnica numa Copa do Mundo, a mais importante é matar a sede de títulos.

Fonte: O Globo


SRN

Fonte: http://www.noticiasfla.com.br/2014/03/Uma-Copa-Mundo-particular-campo-marketing-esportivo.html

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