O pai da namorada avisa em voz alta que a filha não pode se relacionar com “preto ou pobre”. O oficial do Exército arrasta o jovem para a delegacia só por causa da cor da pele. O porteiro mostra ao moleque o caminho do elevador de serviço. O vendedor de carros duvida que aquele sujeito de “estilo jamaicano” tenha dinheiro suficiente. E a professora deixa o bebê chorando na escola porque se recusa a trocar a fralda de um “negrinho”.
De uma forma ou de outra, os casos acima acertaram em cheio personagens renomados do futebol brasileiro. Antes ou depois da fama. Todos negros. Todos vítimas em seu próprio país. Neste 13 de maio que marca os 126 anos da Lei Áurea, o GloboEsporte.com reúne depoimentos de jogadores, ex-jogadores, técnicos e árbitros para lembrar que o racismo não está apenas na banana europeia lançada em direção a Daniel Alves. O painel doméstico mostra que, mais de um século após a Abolição, a História do Brasil não avança da mesma forma para todos.
Marcelinho Carioca, ex-Corinthians e Fla
- Na época em que tinha 13 anos, meu pai era gari da Comlurb, e eu vendia picolé, refrigerante e salgado em todas as praias do Rio de Janeiro com a minha mãe. No bairro de Sulacap, onde eu morava na época, só duas pessoas tinham uma condição financeira muito boa. Uma delas era o pai do meu melhor amigo até hoje, o Marcos André, um garoto loirinho que tinha o apelido de Badé. Ele comprava roupas para mim e fazia tudo o que podia para me ajudar. Já a outra pessoa com um bom padrão de vida era um marinheiro branco. Eu era apaixonado pela filha dele e ela por mim. Como eu era pretinho, pobre e jogava no Madureira, a gente namorava escondido. No entanto, o pai dela acabou descobrindo. Numa sexta-feira, eu estava jogando baralho na rua com os meus amigos quando ele chegou e disse na minha cara e na frente de todo mundo que a sua filha não namorava nem preto nem pobre. Meus amigos ficaram revoltados, e eu comecei a chorar. Só que o mundo deu voltas. Do Madureira, eu fui pro Flamengo, e meu pai saiu da Comlurb para ser motorista do chefe dele. No dia 30 de novembro de 1988, estreei nos profissionais na vitória do Flamengo sobre o Fluminense por 1 a 0, com gol de Bebeto. Eu entrei aos 11 minutos do primeiro tempo no lugar do Zico. Na hora, eu não sabia se prestava atenção nos meus amigos na geral, no estádio, no jogo ou no Zico. Ao chegar em casa, a vizinhança estava em festa, ao som de Bebeto e Agepê, por causa da minha atuação. Para minha surpresa, o pai da menina chegou de repente. Todos ficaram preocupados com a minha possível reação, mas eu o tratei superbem.
Zé Roberto, meia do Brasiliense, ex-Bota, Fla, Inter e Bahia
- O episódio mais marcante aconteceu, na verdade, com meu filho, em Porto Alegre. Minha esposa foi pegá-lo na escola. Ele tinha 3 anos, e era só ele de negro na escola. Quando ela foi pegá-lo, ele estava cheio de cocô, no cantinho da sala, chorando, sem falar com ninguém. Minha esposa perguntou para a professora por que aquilo tinha ocorrido, por que não o tinham limpado. E a professora falou que “não tinha obrigação de limpar negrinho”. Ouvimos isso até mesmo da própria diretora. Comigo, uma vez, em Salvador, entrei em uma loja de grife, que tinha três atendentes. Por muito tempo elas ficaram me olhando e não vieram me atender. Quando passou um torcedor e me reconheceu, viram que eu era famoso, aí mudou todo o comportamento, passaram a me atender bem. Em outra ocasião, eu estava chegando no meu prédio com meu carro conversível. Entrei no elevador e uma mulher me olhou e perguntou o que eu fazia. Eu respondi que era jogador, e ela disse: “Ah, sim, um moreninho desses tinha que ser jogador ou pagodeiro para ter um carro desses”.
Adílio, ex-Fla, hoje diretor do time máster
- Depois que me tornei jogador, não sofri nenhum preconceito não. Mas nos tempos de moleque da Cruzada São Sebastião (favela no Leblon, no Rio de Janeiro), tinha aquela coisa... Toda vez que eu passava por uma madame nas ruas de Ipanema ela segurava a bolsa. Mas o pior foi no prédio da minha madrinha, dona Aparecida, e meu padrinho, seu Abelardo. Minha mãe fazia faxina lá, eles me batizaram. Eu devia ter uns 15 anos, estava no infantil do Flamengo. Fui lá visitar a minha madrinha, o porteiro mandou eu entrar pelo elevador de serviço. Quando cheguei na casa dela, comentei. Ela ficou muito chateada, desceu, deu uma bronca no porteiro e me fez voltar para subir de novo, só que pelo elevador social. Isso tudo que se vê hoje é muito triste. Minha mãe sempre me ensinou que somos todos iguais, independentemente de raça, cor... Lembro que fui o primeiro negro a estudar num colégio na Zona Sul. Tirava as melhores notas, abri espaço para os que vieram depois. Procurei sempre ter bom comportamento e boas notas, não dava motivo para ninguém reclamar. Depois, quando jogador, fiz questão de terminar a minha faculdade de Educação Física.
Mauricio, ex-Botafogo
- Em 1991, eu jogava no Celta de Vigo e fui contratado pelo Grêmio. Logo que cheguei a Porto Alegre fui a uma concessionária para comprar um carro. Como tinha saído da Espanha em pleno verão europeu, ainda estava bem queimadão. Além disso, estava com um estilo meio jamaicano, com cabelo arrepiado, macacão jeans e chinelo. Ao entrar na concessionária, comecei a ver os carros, mas reparei que ninguém vinha me atender por conta da minha aparência e do modo como eu estava vestido. No fundo achavam que não teria condições de comprar um carro. Puro preconceito. Então fui ao gerente, que me pediu mil desculpas. Mesmo assim, só aceitei ser atendido por ele e disse que só sairia do local após pagar à vista e receber toda a documentação do veículo. Foi o que aconteceu. Independentemente da aparência, todos devem ser tratados da mesma maneira. Até porque as aparências enganam. Tem gente que anda de terno e gravata e assalta banco.
Jayme de Almeida, ex-técnico do Fla, em entrevista à Rádio Globo
- Já passei por muita coisa aqui no Rio de Janeiro pela cor da minha pele, pela minha raça. Tenho muito orgulho disso, mas já fui discriminado várias vezes. Tem um episódio gravíssimo, que pouca gente sabe. Aconteceu em um carnaval, na época da ditadura. Eu estava indo para o baile na AABB, estava ali na Cruzada São Sebastião. E a gente ganhava convite de uma amiga nossa, das meninas cujos pais eram sócios. E ela não estava conseguindo me entregar. Eu estava dando a volta, e tem uma porta que é perto da Cruzada. Eram 23h30, meia-noite, e tinha um senhor na minha frente. Ele achou que eu o estava seguindo, por ser negro, né. Ele entrou na 14ª DP, e eu continuei andando. Ele saiu com um detetive e disse: “Está me seguindo, quer me roubar”. Quando entrei na delegacia, eu por ser negro, e ele por ser um oficial do Exército, passei a noite preso por causa disso. Foi muito desagradável, lamentável.
Paulo Isidoro, ex-Vitória, Palmeiras, Cruzeiro, Internacional e Fluminense
- Comigo nunca aconteceu aquela situação direta e contundente de racismo, sempre foi uma coisa mais velada. Geralmente, quando entrava numa loja, num shopping ou restaurante, na adolescência e no início da minha carreira, reparava um olhar diferente de algumas pessoas. Era uma minoria, mas sempre me deparava com pessoas que agiam assim. Muitas vezes, o tratamento é diferente até me reconhecerem. É uma coisa que só o negro percebe. Só que isso nunca me afetou. Como recebi uma boa educação tratava essas pessoas com a mesma indiferença. O racismo sempre existiu e existe até hoje. Acho que isso até virou cultural. É uma pena ver que no Brasil, país com a maior população negra, o preconceito e o racismo ainda persistem. No entanto, quando você foi passa a ser conhecido e tem uma ascensão social, as pessoas te respeitam mais.
Carlos Alberto Pintinho, ex-meia do Fluminense
Quando eu ia com o Paulo Cezar Caju para a boate, não tinha problema porque ele era bastante conhecido. O PC é o PC, né? Mas quando eu ia sozinho... Uma vez fui barrado no clube Costa Brava. Cada vez era uma desculpa, dizia que o máximo de pessoas estava atingido ou outra coisa. Mas, na verdade, era preconceito.
Bujica, ex-Fla e Bota, hoje professor de educação física em Rio Branco (AC)
- Fora do campo já vivi algumas situações. No início da década de 90, quando jogava pelo Botafogo, estava com minha família em uma cidade do Sul e entrei num restaurante. Por coincidência, nesse dia, o único "moreninho" era eu. Quando entrei, você acaba prestando muita atenção nas pessoas porque elas olham muito para você. Comi e, na hora em que saí, ouvi um comentário besta de um cidadão. Mas não gosto de confusão e nunca me preocupei muito com o racismo. Aconteceram outras coisas parecidas, as pessoas falarem "macaco", "macaquinho", mas nem esquentei a cabeça com isso. O racismo existe e tem que combatido ou orientado.
Marcos Mateus Pereira, árbitro da Federação de Futebol de Mato Grosso do Sul (FFMS), no quadro da CBF desde 2004
- Eu apitava uma partida da Série B estadual em 2011, em Campo Grande, quando comecei a ouvir das arquibancadas alguém me ofendendo, me chamando de macaco. Não foi uma nem duas, foram várias vezes. Minha primeira reação foi tentar identificar o autor, e fiquei surpreso e indignado ao descobrir que era o presidente de uma das equipes que estavam em campo. Interrompi o jogo e pedi a ação dos policiais, que foram até o dirigente e o prenderam em flagrante. Foi uma cena inusitada ver o presidente sendo algemado e colocado no camburão. Ele permaneceu preso até o fim da partida, e depois fomos encaminhados à delegacia, onde prestei depoimento. Todos no estádio ouviram as ofensas. Jogadores, policiais, repórteres, inclusive meu filho, que estava assistindo ao jogo e não entendeu bem o que aconteceu. Senti-me muito ofendido, principalmente por se tratar de um dirigente proferindo aquelas ofensas.
Rodolfo, goleiro do Pimentense (RO)
- Já passei por essa situação de preconceito várias vezes. Uma vez, em Ivinhema-MS, um repórter estava atrás do gol e, quando eu fiz uma defesa, ele disse: “Esse macaco está pegando tudo”. Só que ninguém escutou, eu só escutei porque ele estava próximo. Então eu também ignorei, mas depois ele veio me entrevistar no fim do jogo e eu não dei a entrevista. Só falei que eu merecia respeito, porque eu o respeitava, e queria ser respeitado também. Nunca discriminei ninguém independentemente de ser branco, negro ou amarelo. Sempre respeitei o próximo, foi o que meu pai me ensinou.
Dida, goleiro do América-RN
- Após eu ter feito uma defesa, um torcedor do Alecrim me chamou de macaco. Lamento muito, até porque já joguei pelo Alecrim, e é um dos times pelo qual eu torço. Após o ocorrido, já houve uma punição para o time do Alecrim, e ficou nisso mesmo. Superar, eu já superei. A gente tem que superar essas coisas o mais rápido possível. Eu não podia deixar essa mágoa dentro do peito. Mas a gente fica chateado pela situação que aconteceu e que, infelizmente, não acontece só comigo.
Roberto, goleiro da Ponte Preta
- Na época de júnior, durante um jogo, o árbitro era negro, e um atleta do outro time foi reclamar e o chamou de macaco. Partimos para cima do rapaz na hora. O árbitro ia expulsar, mas nós falamos que não precisava, que íamos resolver aquilo dentro de campo. Eu chamei o capitão do outro time e falei: “Não toca mais a bola para ele. Eu até deixo um jogador do meu time ali parado do lado dele, mas não toca mais para ele”. E assim foi, até ele pedir para ser substituído. O árbitro ficou surpreso e até se emocionou com a nossa iniciativa. Se algo assim acontecesse em um jogo profissional, ia ficar muito mais notório.
Não faltam exemplos de racismo país afora, mas os brasileiros também relatam casos no exterior. Assim como Daniel Alves, que comeu a banana atirada por um torcedor do Villarreal, personagens do futebol lembram que episódios de preconceito em outros países são comuns.
Djalminha, ex-Flamengo e Palmeiras
- Racismo a gente sabe que existe em todo lugar do mundo, mesmo que de forma disfarçada. Embora não tenha como comprovar efetivamente, na época em que eu jogava no Austria Viena (2002-2003) aconteceu uma situação comigo que eu só posso atribuir ao racismo. Certo dia entrei numa loja do Mc Donald´s e sentei para ser atendido. No entanto, o rapaz foi extremamente grosso e do nada começou a me tratar mal. Ele falava alto, gesticulava e deixava claro que não queria me atender. Eu não entendia o que ele falava exatamente por não saber o idioma. Mesmo assim deixei claro que só sairia dali quando fosse atendido. No entanto, a situação só foi resolvida quando chamei o assessor do clube e ele explicou quem eu era. Aí o tratamento e a forma de falar mudaram da água pro vinho. No final, o funcionário ofereceu até sorvete. Para mim não tinha outro motivo a não ser racismo. Até porque o normal é você entrar num local para lanchar e ser bem atendido, ainda mais no Mc Donald´s que está acostumado a receber gente dos quatro cantos do mundo. Acho legais todas estas mobilizações contra o racismo, mas poucas atitudes realmente práticas são tomadas. É preciso uma legislação mais rígida. Não basta todo mundo falar que é contra o racismo. Quando você sofre o preconceito, o desprezo é a melhor resposta.
Gonçalves, ex-Botafogo
- Quando jogava no México, os torcedores e os próprios jogadores mexicanos, argentinos, uruguaios e chilenos sempre chamavam os brasileiros de "macaquitos". Existe esta coisa do macaco ser associado ao Brasil no exterior por conta da floresta amazônica e do nosso clima tropical. Sou mulato e não negro, e mesmo assim sofria este tipo de preconceito fora do Brasil. Já fora dos campos, o tratamento nos shoppings e restaurantes lá fora era privilegiado por eu ser bem remunerado e conhecido. Aqui no Brasil não me lembro também de ter sido vítima de racismo fora dos campos. Este tipo de preconceito geralmente é usado no esporte pelo torcedor rival. A pessoa que atira banana no campo quer desestabilizar emocionalmente o adversário para prejudicar o seu time. No esporte, o racismo é mais um instrumento de provocação. É um tipo de preconceito diferente da segregação racial existente na África do Sul, por exemplo, onde o negro era considerado sujo e inferior. Quando falam que os torcedores do São Paulo e do Fluminense são bambis ou que os torcedores do Flamengo são favelados, isso também é uma forma de preconceito. No entanto, é um tipo de provocação mais restrito às partidas, ou seja, não quer dizer que os torcedores destes times não possam conviver entre si e com outras torcidas no dia a dia. Mesmo assim, é importante acabar com qualquer tipo de preconceito.
Marcos Assunção, ex-Figueirense, Palmeiras e Santos
- Infelizmente esse problema do racismo não é nada de hoje e nem atual. Junto com meus companheiros Cafu e Aldair, sofríamos muito com isso quando jogamos no Roma. Na Europa é um fato que acontece constantemente. Achei muito boa a atitude do Daniel Alves, pois foi uma boa resposta a pessoas mal-educadas que ainda insistem em ofender alguns atletas. A educação que dou a meus filhos em casa não é essa.
Paulo Miranda, ex-jogador, atual técnico do Genus
- Na época, no Bordeaux, da França, éramos eu e mais dois jogadores negros, meus amigos, jogando contra o Valência da Espanha e, na ocasião, os torcedores imitavam macaco quando nós pegávamos na bola, mas isso só fez com que nós jogássemos muito mais. Eu, como homem, tenho a certeza que isso um dia vai acabar e tem realmente que acabar.
Fonte: GE
SRN
Fonte: http://www.noticiasfla.com.br/2014/05/Confira-historias-carismo-vividas-jogadores-tecnicos.html
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